A guerra que quando não mata, carcome e dilacera os corpos
Lucas Dantas
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Imagem: Corpo em distopia – Lai Ferreira (IG: @llais_s)
Quem são os corpos que sobrevivem ao redemoinho genocida e violento do mundo? Quem são os corpos insustentáveis em sociedade? Quantos deles habitam a educação exercendo seus direitos mínimos de cidadania? Quantos produzem conhecimento? Quantos propõem saídas e resultados para esta sociedade? Como a educação contribui para a sustentabilidade ou para a insustentabilidade deles? Precisamos problematizar a permanência dos corpos na educação e refletir de que maneira o contexto educacional expulsa ou incentiva corpos não hegemônicos a continuarem nela, produzindo conhecimento, elaborando propostas e outras maneiras de habitar o mundo.
Estamos vivendo uma guerra contra os corpos dissidentes. Mas, ela é silenciosa. Por vezes ela se mostra, outrora se esconde. Ela não nasceu agora, ela é ancestral. Ela se atualiza. Estamos vivendo uma guerra. Mas, ela faz parecer que não é uma guerra. Ela faz parecer que as coisas estão bem e que tudo está caminhando no seu devido lugar. Ela faz parecer que não é uma guerra para que fiquemos em estado de submissão, de passividade, em estado de torpor e alienação. Desarticular as informações políticas de um povo é a melhor estratégia para que esse povo possa não ter consciência do estado em que ele se encontra e, não tendo consciência, não visualiza mudanças.
Deixando de compreender onde reside o erro, ele também não vislumbra a saída, não cobra a solução. A maior vitória dessa guerra é não se passar por uma guerra, e desarticulando as informações, formatando as consciências, as forças hegemônicas que sempre vibraram neste mundo continuam a existir em estado de hegemonia. Peguemos os exemplos de raça, gênero e sexualidade. O estado e a qualidade de vida com que pessoas transgêneras, negras, indígenas e LGBT+ vivem neste mundo é um estado de guerra, onde o ataque se mobiliza do nível mais concreto até o mais subjetivo. Deixando de pautar os privilégios que a branquitude, a heterossexualidade e a cisgeneridade tem neste mundo também deixamos de pautar como essas condições de existência chegaram ao poder e se tornaram símbolos do que é ser normal ao mesmo tempo em que considera anormal tudo aquilo que se difere dela. A guerra então está dada e ela tem como foco perseguir as existências não normativas, fora dos padrões, desencaixadas da norma, para que elas possam parar de atrapalhar o caminhar deste mundo, que ela se retire dele e pare de uma vez de celebrar algo que não seja o sentenciado pela sociedade. Há uma guerra acontecendo, mas para quem ela está em voga?
O mundo é um lugar perigoso para aqueles que não foram autorizados a pisar nele, ou perderam no meio do caminho a outorga para continuar existindo com direito e liberdade. Estar no mundo com a liberdade suspensa é não existir, é não poder propor, é não poder se impor, é reduzir os afetos para engrossar a casca da guerra, é estar mais atento do que relaxado, é não ter direito à paz.
Ser um corpo dissidente no mundo é não passar despercebido, é ser sempre notado, apontado, acusado, mal visto, é chegar com o copo meio cheio, é não habitar o vazio, a possibilidade. Ser um corpo dissidente no mundo é perder as possibilidades, as oportunidades, as chances de fluir e prosperar na vida, é conviver arraigado no boicote: estrutural, mental, externo, interno. Estão arraigados no boicote os pobres, os negros, a comunidade LGBT+, as mulheres, os gordos, os migrantes, os imigrantes, as pessoas com deficiência, os indígenas, os ciganos e todos aqueles que não passam na fronteira do padrão; que permanecem do lado de cá acusados por corpos que se julgam neutros e normais. Esses não têm direito à vida, e quem não tem direito à vida perdem sobretudo o direito à educação. Esses vivenciam o oposto da utopia, vivenciam a descrença, o desgaste, a desesperança, o cansaço, o fracasso de um projeto, vivenciam a distopia.
Um corpo em distopia é um corpo cansado deste mundo, que se cansou do tratamento oferecido a ele no momento em que descobriram ou contaram que ele não era neutro, que precisava ser punido, vigiado, cobrado, que ele era risível, que não teria chance alguma com a vida. Um corpo em distopia não sonha, tolera o mundo. Ele é obrigado a ouvir que somos todos humanos, mas sabe que não experienciamos a mesma humanidade, para alguns ela é ausência, ela é desumanidade.
Um corpo em distopia carrega utopias possíveis, prontas para serem calcadas, executadas, operadas na encruzilhada deste mundo. Pois como nos aponta Audre Lorde sobre o maquinário da opressão: “E quando elas aparecem para me destruir, não durará muito para que depois eles apareçam para destruir você.”