A lente que vamos usar

Ernesto Nunes
Psicólogo, mestre em psicologia do desenvolvimento, anticapitalista por princípio
ernesto78nunes@gmail.com
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Imagen: Pixabay

– “Estamos todos no mesmo barco!”
– “Não diga absurdos. Estamos na mesma tempestade, mas não no mesmo barco.”

Salvar a economia ou salvar vidas é o impasse que tem se colocado: voltar ao trabalho x aderir à quarentena. O binarismo cego é o risco desse pensamento e, entre um extremo e outro, os discursos oportunistas brotam e precisam ser lidos com discernimento. Patricia Hill Collins (2019, 137) nos alerta sobre o pensamento binário, em que os termos são sempre compreendidos em oposição, uma parte sendo inerentemente oposta à outra. Como brinquei com a epígrafe acima, não estamos no mesmo barco. Os empresários estão sujeitos a grandes perdas sim, mas isso dificilmente os coloca numa condição de vulnerabilidade, fome ou falta de acesso a serviços básicos.

Quando os empresários, em especial liberais, bradam que o Brasil não pode parar e que as pessoas precisam trabalhar porque estão passando fome, assumem em seu discurso a pseudo preocupação com um grupo que vive permanentemente na vulnerabilidade e na linha do desemprego, que outrora são esquecidos. Ignora-se que a fome e o desemprego não são resultados da pandemia, mas sim de um sistema desigual que se mantém pela perspectiva da necropolítica (Membe 2018) que compreende que algumas existências são úteis apenas como coisas que precisam fazer a máquina capital funcionar, são corpos úteis, fora disso são descartáveis, em especial, negros, pobres, mulheres, a periferia. Daí surge todo um construto ideológico pautado na moral e nos bons costumes. Sobre a moral, Terezinha Rios (2011) nos explica que esse conceito tem caráter normativo, dita regras e padrões organizadores da sociedade; já a ética é reflexiva, nos convoca a questionar pautados numa ponderação coletiva e menos individual. A moral tem regras, a ética tem princípios, a saber: respeito, justiça e solidariedade.

Podemos então afirmar que o discurso binário de defesa pelo retorno ao trabalho é baseado na moral disfarçada de ética. É uma estratégia narrativa perversa para humanizar um discurso que ecoe como afável, mas na defesa da manutenção de um sistema complexo de opressões.

Não é de agora que os poderes hegemônicos normatizadores do mundo que vivemos (Estado, economia, grandes oligarquias) se utilizam moral e perversamente do discurso pela vida para a manutenção do status quo, nos fazendo pensar que esse é o melhor jeito de viver, que sempre foi assim e deve permanecer. O discurso pró-vida contra a legalização do aborto, por exemplo, está intimamente relacionado com o discurso de manutenção das opressões, do controle dos corpos úteis e da moralização da vida, utilizando, como recurso narrativo, estratégias de pseudo cuidado sobre a vida humana. Criminalizar os sujeitos que defendem quarentena ou o direito ao aborto, por exemplo, é estratégia para impedir qualquer debate ou questionamento ético que coloque em xeque a estrutura de funcionamento neoliberal capitalista que se mantém nos pilares do “racismo, sexismo, classismo e especismo” (Zanello 2018).

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Fotografía: Pixabay

Quanto à criminalização de ações que ameaçam as hegemonias, podemos citar o assédio e a repressão das forças estatais aos movimentos autônomos da Espanha. Esses movimentos de base anarquista, potencializaram suas práticas colaborativas nesse momento de crise, fortalecendo e criando ações humanitárias. Atividades autogeridas de distribuição de comida por bancos alimentares, assessoria jurídica gratuita sobre direitos trabalhistas, criação de uma rede de solidariedade pelo Sindicato Popular de Vendedores Ambulantes de Barcelona para esse setor, que é particularmente vulnerável à crise. Importante ressaltar que o modelo neoliberal cresceu enormemente nos últimos anos na Espanha. Ações como essas, de apoio mútuo, são estratégias anticapitalistas de resistência comuns em grupos anarquistas que concebem uma outra organização social, conseguindo, nesse tempo pandêmico, situar o debate economia x vidas de forma ética e não polarizada, refletindo inclusive sobre o isolamento de grupos historicamente segregados, como os próprios idosos.

A perspectiva neoliberal coloca iniciativas privadas e lucro como partes fundamentais do motor da economia, ficando o Estado, em duas posições dialéticas: à mercê dessa ordem mundial e promotor de sua organização. O ataque aos serviços públicos tem sido uma estratégia política para um suposto enxugamento da máquina pública. Tal discurso perde força nesse momento em que é gritante a importância de um sistema público de saúde. Não surpreende que “governos com menos lealdade ao ideário neoliberal são os que estão a actuar mais eficazmente contra a pandemia” (Sousa Santos 2020, 24).

A pandemia parece ter lançado grande lente sobre questões éticas, sociais, humanitárias e políticas. Mas como bem sabemos, as lentes são objetos que podemos ou não usar e estão subjugados ao nosso olhar. Ou seja, é necessário se propor a olhar por meio delas. “Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas” (Sousa Santos 2020, 6). O convite que fica, para agora e depois, é se distanciar da ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo que vivemos.

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