Autoconfiança como ato político

Quando a construção da (auto)confiança é um ato político?
A autoconfiança é um constructo político-social?

Priscylla Monteiro Joca
Doutoranda em Direito pela Universidade de Montréal
Instagram: @priscyllamonteirojoca
priscyllamonteirojoca@gmail.com

Perdi a conta da quantidade de vezes que ouvi (e disse), “queria ter a autoconfiança de um homem canadense branco.” Ou, “ele só conseguiu fazer tudo isso porque ele é homem.” Essas frases (me/nos) provocam uma avalanche de sentir-pensar.

Tenho me questionado, então, como é possível ‘trabalhar a (minha/nossa) autoconfiança.’ Esse sentimento que tem sido referido como algo subjetivo, individual, que emanaria da relação de uma pessoa consigo mesma. Contudo, tenho também refletido sobre outras camadas ou aspectos da autoconfiança e como esta se expressa em âmbitos coletivo e político-social.

Partindo da compreensão de que esse não é um sentimento homogêneo ou monolítico (do modo ‘ou se têm, ou não se têm’), a autoconfiança pode se expressar nas relações interpessoais, quando se confia que é merecedora de amor, amizade e intimidade acolhedora e respeitosa. Pode também se expressar na autoimagem, seja na aceitação da aparência física e festejo do próprio corpo (seja este como for), ou na consciência e valorização de competências e habilidades que lhe são próprias. Esses aspectos da autoconfiança são fundamentais!

No entanto, a que me refiro é a (auto)confiança que se tem na capacidade de ocupar posições profissionais ou políticas que envolvem exercício de poder de decisão de caráter coletivo e/ou público. Por vezes, essas posições estão relacionadas ao imaginário social-neoliberal da meritocracia. Assim como, me refiro à confiança de que, em se conseguindo ocupar essas posições, haverá um sentimento de pertencimento, a sensação de que tal lugar também lhe pertence como um locus social-político que lhe cabe ocupar.

Nos últimos anos, tenho refletido sobre isso por duas razões. Uma é que, como pesquisadora em direitos humanos e ambientais, tenho me perguntado questões: Como a fragilidade de autoconfiança (individual e coletiva) se apresenta como mais um obstáculo para a luta por e o exercício de direitos? E como essa ‘fragilidade’, somada a questões estruturais, dificulta ainda mais a busca de minorias políticas por exercer profissões jurídicas associadas ao poder decisional, como a magistratura? E, em estando nessas profissões, como essas pessoas se sentem emocionalmente; há sentimentos de pertencimento ou de apartamento e isolamento? Como essa fragilidade se manifesta também na academia, no acesso e na sensação de pertencimento (como estudantes e docentes)? Como essa fragilidade de autoconfiança é um constructo político-social a fim de manter relações assimétricas de poder associadas ao Direito, ao Sistema de Justiça e à Academia? E como isso se associa ao não exercício da participação por parte de minorias políticas que afeta a construção de uma democracia real?

Outra, se relaciona a um aspecto mais pessoal. Que remonta a uma lista infindável de experiências sociais como mulher, vinda da classe trabalhadora, filha de mãe solo e negra, do nordeste do Brasil, que precisou trabalhar desde o início da adolescência, que foi bolsista a vida inteira (desde o período escolar), imigrante no Québec, Canadá. Essas experiências não são comparáveis com a de outros corpos os quais por questões de gênero, sexo, raça e classe acessam bem menos direitos (que, por serem tão elitizados, acabam sendo vistos como privilégios). Mas são minhas experiências. E elas me afetam como pessoa e como ser coletivo e social.

Por exemplo, nunca nem tentei fazer concurso público quando morava no Brasil porque achava que a preparação para concursos estaria longe da minha realidade socioeconômica, precisava trabalhar: quem iria bancar horas de dedicação ao estudo e quem iria pagar cursos preparatórios? Tenho colegas excepcionais que superaram desafios semelhantes e passaram em concursos disputados. Eu não fui exceção, tornei-me mais um exemplo comum.

No Canadá, tenho dialogado com a minha autoconfiança sobre questões ligadas ao acesso e ao pertencimento. Estou fazendo doutorado em direito em uma universidade que está entre as 100 melhores do mundo. Tenho tido a honra (e o privilégio) de ter bolsas de prestígio e de trabalhar com assistente de professoras e professores que são referências internacionais em seus campos de estudo. Ainda assim, todos os dias me pergunto, “o que estou fazendo aqui?” (E isso vai para além da síndrome de impostora que acomete tantas acadêmicas, isso também toca questões e experiências sociais e políticas).

Por vezes bate dúvidas como, será que deveria ao menos tentar me tornar professora por aqui? (Um percentual baixíssimo de doutoras se torna professora, enquanto o desemprego entre doutoras(as) e mestras(es) vêm aumentando assustadoramente). Ainda que saiba (com muita certeza) do quanto era uma excelente professora universitária no Brasil e do quanto amo a docência… (Minha avó, como matriarca, em seus raros momentos de carinho, dizia, “minha filha, vá para onde você for, mas você sempre será uma professora.”) Por vezes, penso que, se eu conseguir me tornar uma trabalhadora ocupando a posição de sobrevivência que seja ou uma pesquisadora-eterna-pós-doutoranda, já terei ido longe demais por aqui. Longe o suficiente para a classe social de onde vim, para o lugar socioeconômico onde me construí e para a minha condição de imigrante. Longe o suficiente para ter sido uma das primeiras graduandas e vir a ser a primeira doutora na família de onde vim.

E como tudo isso tem afetado as minhas angústias diante da escrita da tese? E quando o doutorado acabar, o que será? E se, diante de tantos privilégios me sinto assim, como se sentiriam mulheres indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, pantaneiras, pescadoras, camponesas, negras, latino-americanas, finalizando um doutorado aqui ou em qualquer outro lugar do mundo? E quanto às mulheres que, especialmente nesses tempos de pandemia, tem vivido seus cotidianos na resistência e na luta pela sobrevivência, se sentindo à margem de quaisquer espaços decisionais que as afetam intensamente?

Diante de tanto, não tenho respostas. Trago somente mais perguntas. Como superar esses sentimentos? Como superaremos juntas, sem nos tornar cases de sucesso e sem nos deixar emaranhar na lógica competitiva neoliberal, revolucionando lugares, dando-nos às mãos, abrindo caminhos para as que vierem depois e estando junta àquelas que estão também caminhando hoje? Como nos libertaremos da colonialidade de poderes e saberes que insistem em nos legar à subalternidade, ou nos negam a possibilidade de participar efetivamente de instâncias de decisão, ou nos convidam a adentrar em lógicas colonialistas/classistas/racistas/competitivas/excludentes a fim de ‘nos destacarmos’ e sermos subalternamente inseridas de algum modo? E como tomaremos consciência de nós mesmas, compreendendo que existem mulheres em situações tão mais vulnerabilizadas e que, portanto, necessitarão de mais atenção de políticas públicas e ações de solidariedade?

Nesse momento, estou lendo a psicologia do colonialismo, de Ashis Nandy. Em um futuro breve ou distante, talvez encontre pistas de respostas possíveis. Por hora, tenho tentado me fortalecer com a só certeza de que sim, juntas, nós podemos. E com a forte impressão de que a autoconfiança não é somente uma construção individual-subjetiva, é também um constructo político-social. Para nós, mulheres que viemos do Sul ou mesmo do Sul do Sul, seguirmos juntas construindo e fortalecendo nossas próprias expressões de autoconfiança é um ato político.

Para Danielle Coenga.

Para a minha mãe.

E para uma jovem mulher negra que um dia há de ser juíza e professora de pós-graduação.

Com um agradecimento especial ao Marcos Gigio, esse amigo incrível que tem me feito reaprender a ter fé em outras humanidades possíveis.

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